anotações de leitura
Cafonas
A derrubada de estátuas é saudável e um símbolo de sociedades democráticas. A queda da ditadura soviética e do autoritarismo assassino que colonizou boa parte da Europa Central e do Leste Europeu costuma ser marcada pela derrubada das estátuas de Lênin. Em nenhum momento se propôs proibir seus livros ou se vilanizou o personagem histórico. Quem foi “apagado” não foi o pensador bolchevique, o líder da Revolução de 1917 e o chefe de Estado, mas o mito leninista que conferia legitimidade ao regime de terror que governava aqueles países. Não se trata de revisionismo histórico ou de julgamento moral de figuras do passado, mas sim de mitos sobre os quais poderes fáticos do presente justificam seu exercício de poder.
As estátuas expressam e alimentam a megalomania, a vontade de poder, uma série de valores negativos para uma sociedade democrática. Acredito que não se faz uma sociedade democrática com a presença delas. Sou inclusive favorável à derrubada de todas: não apenas dos escravocratas, dos colonialistas, dos ditadores. A ideia de estátua alimenta uma mitologia que nos faz depositar nossa fé em líderes despóticos, sejam eles eleitos ou não. Desde que a estátua não tenha nenhum valor artístico, poderia ser derrubada. A maioria delas é de péssimo gosto, aliás. Costumam ser obras neoclássicas cafonas. Às bonitas, reservemos uma galeria de algum museu.
Miguel Lago em Derrubem as estátuas, publicado na revista piauí nº 168
(Anotado em 2024-12-26)
Onipresença
Em tempos de ChatGPT, é como se vivêssemos numa era de autômatos que foram destituídos de corpo. A Olimpia de O homem da areia, a boneca de pau que imita o comportamento humano, é uma onipresença espectral que nos telefona para vender internet por fibra, escolhe o conteúdo de nossas timelines, define nosso trajeto pelas ruas e muitas vezes nosso destino, molda nossa linguagem e agora começa a redigir os processos judiciais e conteúdos noticiosos que tanto regem nossas vidas. Quando li a cena de Hoffmann sobre o impacto da boneca nos salões de chá, me peguei pensando em como as tecnologias reais do presente nos levam a adotar comportamentos que podem servir mais para validar a máquina (por simplesmente existir) do que promover nossos interesses genuínos.
Quando reclamamos de falta de tempo, de ansiedade, da falta de encontros presenciais e de experiências afetivas constantes e profundas -- e penso aqui também em relações de amizade, de trabalho, de mera coexistência significativa -- convém perguntar se não estamos agindo um pouco como os veneráveis senhores do salão de chá de Hoffmann: dando à tecnologia mais soberania do que deveríamos. Não se trata de uma postura antitecnológica: a boneca de pau e o ChatGPT são esplêndidos sob uma porção de pontos de vista. Não se deve rejeitar por princípio que autômatos e IAs possuam alguma forma de autonomia, de inteligência ou mesmo self. Essas perguntas estão e talvez sempre permaneçam em aberto. Mas qual seu lugar enquanto criações? A tecnologia, ressaltou famosamente Ursula Le Guin, é aquilo que podemos aprender a fazer. A existência de uma IA avançada justifica seu uso para mapear a perfuração de poços de petróleo numa era de crise climática? A simulação convincente de certos aspectos isolados da linguagem e do comportamento humanos justifica levarmos a lógica da otimização às nossas relações comerciais, sociais e pessoais?
Os olhares prodigiosos da máquina não substituem o olhar humano. Nem o olho no olho. Deveríamos preservar em nossa experiência de mundo aquele olho extirpado que faz a ponte entre a alquimia e a ciência.
Daniel Galera em Redes neurais e olhos extirpados
(Anotado em 2023-06-08)
Uma estada em país estrangeiro
O tempo é um ponto no que diz respeito à vida humana, ao passo que a substância flui, a percepção sensorial é imprecisa, a composição do corpo inteiro facilmente putrescível, a alma é um pião que rodopia, o destino difícil de ser previsto e o prestígio carente de discernimento. Em síntese, tudo aquilo que diz respeito ao corpo é um rio, enquanto o que diz respeito à mente ou à alma é um sonho e uma fumaça; quanto à vida, é uma guerra e uma estada em país estrangeiro, a fama dada na posteridade um esquecimento. O que, então, é capaz de nos oferecer uma orientação? Somente a filosofia. Esta requer vigiar para que a divindade interior se mantenha não violenta e incólume, acima de prazeres e sofrimentos, sem agir de maneira aventureira, destituída de meta, nem mentirosa e hipócrita, dispensando absolutamente a ação ou inação alheias; ademais, aceitar todo tipo de acontecimento e o lote que nos cabe, seja qual for, como provenientes daquele lugar, seja onde for, de onde nós mesmo provimos; e principalmente aguardar a morte em uma disposição favorável e tranquila, porquanto ela nada é senão a dissolução dos elementos a partir dos quais cada ser vivo é composto. Se, assim, para os próprios elementos nada há de se temer no fato de cada um se transformar continuamente no outro, por que temer e preocupar-te com tua transformação e dissolução no conjunto? Isso é conforme a natureza, e nada que é conforme a natureza constitui mal.
Marco Aurélio em Meditações (traduzido por Edson Bini)
(Anotado em 2023-02-01)
A voz da floresta
É por isso que devemos nos recusar a entregar nossa floresta. Não queremos que se torne uma terra nua e árida cortada por córregos lamacentos. Seu valor é alto demais para ser comprada por quem quer que seja. Omama disse a nossos ancestrais para viverem nela, comendo seus frutos e seus animais, bebendo a água de seus rios. Nunca disse a eles para trocarem a floresta e os rios por mercadoria ou dinheiro! Nunca os ensinou a mendigar arroz, peixe em lata de ferro ou cartuchos! O sopro de nossa vida vale muito mais! Para saber disso, não preciso ficar com os olhos cravados em peles de imagens, como fazem os brancos. Basta-me beber yãkoana e sonhar escutando a voz da floresta e os cantos dos xapiri.
Davi Kopenawa (redigido por Bruce Albert) em A queda do céu
(Anotado em 2023-01-06)
Circuito impresso
San Narciso fica mais ao sul, perto de Los Angeles. Tal como muitos lugares na Califórnia que recebem um nome, era menos uma cidade identificável do que um somatório de conceitos — zonas de recenseamento, distritos para o lançamento de bônus públicos, núcleos de lojas, todos recobertos de vias de acesso a sua própria auto-estrada. Mas tinha sido o domicílio e quartel-general do Pierce: o lugar onde iniciara sua especulação imobiliária dez anos antes, criando o pedestal financeiro sobre o qual mais tarde tudo fora erguido, conquanto ordinário e grotesco, em direção ao céu; e isso, ela supunha, o distinguiria de outros lugares, lhe daria uma certa aura. Porém, se havia alguma diferença vital entre San Narciso e o resto da Califórnia do Sul, não dava para se perceber à primeira vista. Édipa chegou num domingo, dirigindo um Impala alugado. Tudo estava parado. Do alto de uma colina, apertando os olhos contra a luz do sol, viu um vasto conglomerado de casas que, como uma plantação bem cuidada, haviam crescido juntas da terra marrom-escuro; lembrou-se do dia em que abrira um rádio transistor para mudar as pilhas e vira seu primeiro circuito impresso. O turbilhão ordenado de casas e ruas, vistas do alto, surgiu diante dela com a mesma inesperada e espantosa clareza do cartão onde estava gravado o circuito. Embora entendesse ainda menos de rádios do que de californianos do sul, ambas configurações transmitiam a impressão hieroglífica de um significado oculto, de uma intenção de comunicar. Aparentemente não havia limite para o que o circuito impresso poderia ter-lhe contado (caso houvesse tentado descobrir); do mesmo modo, no seu primeiro minuto em San Narciso, uma revelação também tremeluziu um centímetro além do limiar de sua consciência. O smog pairava sobre toda a linha do horizonte, o sol refletido na superfície bege-claro era doloroso; ela e o Chevrolet pareciam estacionados no centro de um instante singular, religioso. Como se, em alguma outra freqüência, ou à margem do olho de um ciclone que girava lentamente demais para que a pele quente de Édipa pudesse sentir seu frescor centrífugo, palavras estivessem sendo ditas. Ao menos, suspeitou que assim fosse.
Thomas Pynchon em O Leilão do Lote 49 (traduzido por Jorio Dauster)
(Anotado em 2022-12-23)
O caminho
Alguns, fanáticos,
tendo feito calar
a voz da razão,
submetem-se obtusamente
à inanidade das crenças
e aos dogmas da religião.Enquanto outros,
perplexos, aturdidos,
ficam indecisos
entre clarões e trevas,
entre aceitação e dúvida.Eis que, despertando-os,
clama
a voz estentórica de um fantasma:Ó insensatos,
eternamente ludibriados,
quereis saber o caminho?
O caminho não é este...
Não é este,
nem é aquele...Omar Khayyám (tradução de Christovam de Camargo e Ragy Basile)
(Anotado em 2022-12-18)
Um haicai
as coisas que afundam
com as águas se confundem
— pousadas no infinitoVictor Anselmo Costa (colhido da coleção RÉS | CHÃO, da editora Casatrês)
(Anotado em 2022-12-08)
Sobre H. G. Wells
Como Quevedo, como Voltaire, como Goethe, como mais algum outro, Wells é menos um literato que uma literatura. Escreveu livros loquazes nos quais de certo modo ressurge a gigantesca felicidade de Charles Dickens, prodigou parábolas sociológicas, construiu enciclopédias, ampliou as possibilidades do romance, reescreveu para nosso tempo o Livro de Jó, "essa grande imitação hebréia do diálogo platônico", redigiu sem soberba nem humildade uma autobiografia gratíssima, combateu o comunismo, o nazismo e o cristianismo, polemizou (cortês e mortalmente) com Belloc, historiou o passado, historiou o futuro, registrou vidas reais e imaginárias. Da vasta e diversa biblioteca que ele nos deixou, nada me agrada mais que seu relato de alguns milagres atrozes: The Time Machine, The Island of Dr. Moreau, The Plattner Story, The First Men in the Moon. São os primeiros livros que eu li; talvez sejam os últimos... Penso que haverão de incorporar-se, como a fórmula de Teseu ou a de Ahasverus, à memória geral da espécie e que em seu seio se multiplicarão, para além dos limites da glória de quem os escreveu, para além da morte do idioma em que foram escritos.
Jorge Luis Borges em Outras inquisições (tradução de Sérgio Molina)
(Anotado em 2022-11-06)
Auto-ilusão
Coloquei de um modo impróprio, mas é verdade. Nenhum homem é, de fato, bom, enquanto não souber quão mal ele é, ou poderia ser; enquanto não tiver se dado conta exatamente de quanto direito tem para todo o seu esnobismo, seu escárnio ao falar "criminosos", como se fossem macacos numa floresta, a dez mil milhas de distância; enquanto não se livrar de toda a auto-ilusão suja de falar sobre tipos baixos e crânios deficientes; enquanto não espremer para fora de sua alma até a última gota do óleo dos Fariseus; enquanto sua única esperança não for, de um modo ou outro, a de ter capturado um criminoso, e mantê-lo são e salvo sob seu próprio chapéu.
G. K. Chesterton em O segredo do padre Brown (traduzido por Lucia Santaella)
(Anotado em 2022-10-24)
Âmago
Após o nascimento do terceiro filho, também um menino, Jean-Pierre passou a se dedicar aos seus afazeres, dominado por uma tensa esperança. Seus lábios pareciam mais estreitos, mais comprimidos do que antes, como se tivesse medo de que a terra que lavrava ouvisse a voz da esperança que murmurava em seu peito. Observava a criança, se aproximando do berço com um pesado ressoar dos tamancos sobre o piso de pedra, e olhava para dentro dele, por sobre o ombro, com aquela indiferença que é uma espécie de deformidade característica da humanidade campesina. Como a terra que dominam e a quem servem, aqueles homens, lentos no olhar e na fala, não mostram seu fogo interior. Dessa forma, ao final de tudo, pergunta-se — como no que diz respeito à terra — o que está no seu âmago: calor, violência, uma força misteriosa e terrível — ou nada além de um torrão de terra, uma massa fértil e inerte, fria e insensível, disposta a sustentar um punhado de plantas que mantenha a vida ou que proporcionem a morte.
Joseph Conrad em Os Idiotas (traduzido por Alcebiades Diniz Miguel)
(Anotado em 2022-08-17)